Em Portugal, um terço da população sofre patologias digestivas crónicas. Nos últimos anos, os avanços nesta especialidade médica permitiram melhorar a qualidade de vida dos doentes que, em muitos casos, apresentam sintomas com grande impacto no dia-a-dia.
Os primeiros sintomas manifestaram-se, ainda, antes da adolescência. Aos 14 anos, Mariana Santulhão tinha o corpo de uma menina de 10. Um atraso no crescimento que estava associado à doença de Crohn, uma patologia inflamatória que afeta o tubo digestivo e com que foi diagnosticada naquela altura. “Desde muito cedo, tive sintomas característicos da doença inflamatória intestinal como diarreia, perda de apetite e dor abdominal. Tinha e ainda tenho, sobretudo, sintomas extra-intestinais, como dor articular, problemas cutâneos como eczemas e vários problemas oftalmológicos”, conta a jovem, hoje com 25 anos.
Desde que soube que tinha doença de Crohn, uma das doenças inflamatórias intestinais (DII) mais comuns, Mariana Santulhão tem sido acompanhada por um gastroenterologista. “É fundamental na promoção do meu bem-estar em todas as suas vertentes. Sempre que tenho dúvidas ou preocupações, recorro ao meu médico”, diz a jovem, que criou uma página no Instagram sobre a doença. “Felizmente surgem cada vez mais estudos sobre as DII que nos ajudam a ter uma visão mais ampla e biopsicossocial sobre estas patologias, levando a que os médicos não se limitem apenas a tratar do trato digestivo, mas sim do indivíduo como um todo”.
Nos últimos anos, a gastroenterologia – especialidade que se ocupa do estudo e análise dos órgãos envolvidos no processo digestivo – tem assumido um protagonismo cada vez maior no seio das especialidades médicas. “Representa um conjunto amplo de padecimentos que afetam a saúde dos portugueses: 1/3 da população sofre de uma patologia digestiva crónica”, diz o presidente da Sociedade Portuguesa de Gastroenterologia Guilherme Macedo, referindo que se há sintomas digestivos transitórios e fugazes, também há outros associados a doenças graves. “De forma geral, devemos procurar um especialista quando temos manifestações digestivas evidentes que nos causam preocupação”, recomenda o médico que é também presidente da Organização Mundial de Gastroenterologia. Segundo o especialista, no caso de doenças como o cancro do cólon e do reto “devem ser estabelecidas estratégias de rastreio e prevenção a partir dos 45 anos”.
“Por serem muito comuns nos países civilizados e provocarem inúmeros constrangimentos”, adianta o médico, “as doenças inflamatórias do intestino têm ocupado uma parte significativa das preocupações dos especialistas”. No caso de Mariana Santulhão, por exemplo, a patologia acaba por ditar grande parte do seu quotidiano. “Há muitos dias em que me custa sair da cama para ir trabalhar, porque estou com dores abdominais ou articulares”, afirma a fisioterapeuta, contando que em algumas ocasiões se sente “demasiado cansada para estar com os amigos”. “Quando vou jantar fora, vejo o menu em casa ou percorro as ruas até encontrar um local onde tenha a certeza que encontro algo para comer que não me faça mal. Seja no trabalho, na rua ou no supermercado, é certo que, por vezes, terei de largar tudo para ir a correr à casa de banho mais próxima”.
Do conhecimento do microbioma aos avanços endoscópicos
Nos últimos anos, a gastroenterologia “evoluiu na diferenciação dos especialistas e aumentou a intervenção terapêutica no campo da endoscopia digestiva”, considera a presidente do Grupo de Estudos da Doença Inflamatória Intestinal (GEDII), Paula Ministro. O conhecimento da importância do microbioma e as inúmeras possibilidades terapêuticas que daí advêm; a utilização de endoscópicos e colonoscópios de alta definição que permitem uma melhor avaliação das alterações patológicas encontradas durante os exames; o tratamento endoscópico de lesões do tubo digestivo são alguns dos desenvolvimentos dos últimos anos que a médica destaca. Mas não só: há também um “avanço terapêutico no tratamento das doenças inflamatórias do intestino com a utilização de novos fármacos, novas estratégias terapêuticas e novos objetivos terapêuticos”.
“Mais importante do que a especialidade em si, é o impacto que a inovação no saber e o desenvolvimento técnico teve na vida dos doentes”, sublinha Paula Ministro, salientando também que “os gastrenterologistas integram, muitas vezes, equipas multidisciplinares e multiprofissionais com o objetivo de melhorar a qualidade assistencial”.
O papel dos ensaios clínicos
Para que esta especialidade possa continuar a desenvolver, é preciso continuar a investir em ensaios clínicos, “sem os quais não existem novos medicamentos”, frisa Paula Ministro. “Por motivos regulamentares, é preciso apresentar estudos de elevada qualidade, em que os fármacos são comparados com placebo, e em que é avaliada a sua eficácia e segurança. Por vezes, também são comparados com outros existentes”, explica a gastroenterologista, afirmando que “existem várias unidades hospitalares do SNS que, apesar das dificuldades, participam regularmente em ensaios clínicos”.
Segundo a médica, “há muito a fazer nesta área em termos de criação de equipas multiprofissionais e apoio intra-hospitalar”, seja no “fornecimento de meios técnicos e humanos que permitam a realização de ensaios clínicos”, seja na criação de “circuitos bem estabelecidos para a sua aprovação nas diferentes unidades”.
Também o Presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia sublinha a necessidade de se apostar na inovação. “É um esforço que não deve ser só dos indivíduos e dos médicos, mas também da parte administrativa e tutelar”, frisa Guilherme Macedo.